sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A Pipoca


Rubem Alves
A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar.
Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.
Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado.
Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária literária".
Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.
Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre
o filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria.
Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef.
Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo
— porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas.
Provocam a minha capacidade de sonhar.
Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar.
Pois foi precisamente isso que aconteceu.
A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas.
Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca.
E algo inesperado na minha mente aconteceu.
Minhas idéias começaram a estourar como pipoca.
Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar.
Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.
A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético.
Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros
e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela.
Lembrei-me do sentido religioso da pipoca.
A pipoca tem sentido religioso?
Pois tem.Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam
o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida,
sem alegria, não é vida...).
Pão e vinho devem ser bebidos juntos.
Vida e alegria devem existir juntas.
Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella,
sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.
Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas.
Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho,
os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais.
Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve
a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo,
esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.
Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura.
O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.
Repentinamente os grãos começaram a estourar,
saltavam da panela com uma enorme barulheira.
Mas o extraordinário era o que acontecia com eles:
os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e
macias que até as crianças podiam comer.
O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária,
em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos,
especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o Candomblé?
É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser.
O milho da pipoca não é o que deve ser.
Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro.
O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer,
pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa
— voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.
Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.
Assim acontece com a gente.
As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo.
Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira.
São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa.
Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.
Mas, de repente, vem o fogo.
O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos.
Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente,
perder um emprego, ficar pobre.
Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão
— sofrimentos cujas causas ignoramos.
Há sempre o recurso aos remédios.
Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui.
E com isso a possibilidade da grande transformação.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela,
lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer.
De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma,
ela não pode imaginar destino diferente.
Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada.
A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz.
Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!!
— e ela aparece como outra coisa, completamente diferente,
que ela mesma nunca havia sonhado.
É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte
e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca.
É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.
"Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá.
Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja.
Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha,
que piruá é palavra inexistente.
Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua.
Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.
Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp,
especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca.
Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás.
Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.
Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!"
Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.
Piruás são aquelas pessoas que,
por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar.
Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.
Ignoram o dito de Jesus:
"Quem preservar a sua vida perdê-la-á".
A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura.
O destino delas é triste.
Vão ficar duras a vida inteira.
Não vão se transformar na flor branca macia.
Não vão dar alegria para ninguém.
Terminado o estouro alegre da pipoca,
no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada.
Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram,
são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...
"Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar.
Pois foi precisamente isso que aconteceu".


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