domingo, 9 de setembro de 2012


Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.

Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.

Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.
Rubem Alves

Alma


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Skank e Nando Reis - SUTILMENTE - ACÚSTICO

Qual?



Três homens olham para o horizonte. O sol se anuncia colorindo de abóbora e sangue umas poucas nuvens escuras. Um deles diz: “Vejo no meio das nuvens vermelhas, uma casa. E na janela, um vulto acena para mim”. O segundo homem diz: Vejo no meio das nuvens vermelhas, uma casa. Mas não há nenhum vulto acenando para mim. A casa está vazia, é desabitada”. O terceiro homem diz: “Não vejo vulto, não vejo casa. Vejo as nuvens abóbora e sangue… E como são belas! Sua beleza me enche de alegria”! Essa é uma parábola metafísica. O primeiro homem vê, no meio das nuvens, um vulto, quem sabe o senhor do universo. Se eu gritar ele me ouvirá. Para isso há as orações: gritos que pronunciam o Nome Sagrado, à espera de uma resposta. O segundo vê a casa, mas a casa está vazia, não tem morador. É inútil gritar porque não haverá resposta. É o ateu… E como dói viver num universo que não ouve os gritos dos homens… E o terceiro, que não vê nem casa e nem vulto, vê apenas a beleza, que nome lhe dar? Acho que o nome seria “poeta”. A beleza é o Deus dos poetas. Quem disse isso foi a poeta Helena Kolodi: “Rezam meus olhos quando contemplo a beleza. A beleza é a sombra de Deus no mundo”.
Borges relata que segundo o panteísta irlandês Scotus Erigena, a Sagrada Escritura contém uma infinidade de sentidos. Por isso ele a comparou à plumagem irisada de um pavão. Séculos depois, um cabalista espanhol disse que Deus fez a Escritura para cada um dos homens de Israel. Daí porque, segundo ele, existem tantas Bíblias quantos leitores da Bíblia. Cada leitor vê na Bíblia a imagem do seu próprio rosto.
O teólogo Ludwig Feuerbach disse a mesma coisa de forma poética: “Se as plantas tivessem olhos, gosto e capacidade de julgar, cada planta diria que a sua flor é a mais bonita”. Os deuses das flores são flores. Os deuses das lagartas são lagartas. Os deuses dos cordeiros são cordeiros. Os deuses dos lobos são lobos. Nossos deuses são nossos desejos projetados até os confins do universo. Dize-me como é o teu Deus e eu te direi quem és…
Mosaicos são obras de arte. São feitos com cacos. Os cacos, em si, não têm beleza alguma. Mas se um artista os ajuntar segundo uma visão de beleza eles se transformam numa obra de arte. As Escrituras Sagradas são um livro cheios de cacos. Nelas se encontram poemas, estórias, mitos, pitadas de sabedoria, relatos de acontecimentos portentosos, textos eróticos, matanças, parábolas… Ao ler as Escrituras comportamo-nos como um artista que seleciona cacos para construir um mosaico. Cada religião é um mosaico, um jeito de ajuntar os cacos. Como no caso do labirinto literário de Borges cujos cacos eram peças de um quebra-cabeças que, juntos, formavam o seu rosto, também o mosaico que formamos com os cacos dos textos sagrados tem a forma do nosso rosto Há tantos deuses quantos rostos há. Assim, quando alguém pronuncia o nome “Deus” há de se pergunta: “Qual?”

Rubem Alves

Sinfonia em 3 cores




Thoureau, que amava muito a natureza, escreveu que se um homem resolver viver nas matas para gozar o mistério da vida selvagem será considerado pessoa estranha ou talvez louca. Se, ao contrário, se se puser a cortar as árvores para transformá-las em dinheiro (muito embora vá deixando a desolação por onde passa), será tido como homem trabalhador e responsável.









Lembrei-me disso ao ver um ipê rosa florido. A beleza era tão grande que fiquei ali parado, olhando sua copa contra o céu azul. Os homens normais, encerrados em suas pequenas bolhas metálicas rodantes, devem ter imaginado que não funciono bem.
Gosto dos ipês de forma especial. Questão de afinidade. Alegram-se em fazer as coisas ao contrário. As outras árvores fazem o que é normal abrem-se para o amor na primavera, quando o clima é ameno e o verão está pra chegar, com seu calor e chuvas. O ipê faz amor justo quando o Inverno chega, e a sua copa florida é uma despudorada e triunfante exaltação do cio.

Conheci os ipês na minha infância, em Minas, os pastos queimados pela geada, a poeira subindo das estradas secas e, no meio dos campos, os ipês solitários, colorindo o inverno de alegria, O tempo era diferente, moroso como as vacas que voltam em fim de tarde. As coisas andavam ao ritmo da própria vida, nos seus giros naturais. Mas agora, de repente, esta árvore de outros espaços irrompe no meio do asfalto, pincela a cidade com outras cores, interrompe o tempo urbano de semáforos, buzinas e ultrapassagens, e eu tenho de parar ante esta aparição de um outro mundo. Como aconteceu com Moisés, que pastoreava os rebanhos do sogro, e viu um arbusto pegando fogo, sem se consumir. Ao se aproximar para ver melhor, ouviu uma voz que dizia: “Tira as sandálias dos teus pés, pois a terra em que pisas é santa”. Acho que não foi sarça ardente. Deve ter sido um ipê florido. De fato, algo arde, sem queimar, não na árvore, mas na alma. E concluo que o escritor sagrado estava certo. Também eu acho sacrilégio chegar perto e pisar as milhares de flores caídas, tão lindas, agonizantes, tendo já cumprido sua vocação de amor.
Mas sei que o espaço urbano pensa diferente. O que é milagre para alguns é canseira para a vassoura de outros. Melhor o cimento limpo que a copa colorida. Lembro-me de um pé de ipê, indefeso, com sua casca cortada a toda volta. Meses depois, estava morto, seco. Mas não importa. O ritual de amor no inverno espalhará sementes pela terra e a vida triunfará sobre a morte, o verde arrebentará o asfalto. A despeito de toda a nossa loucura, os ipês continuam fiéis à sua vocação de beleza, e nos esperarão tranqüilos. Ainda haverá de vir um tempo em que os homens e a natureza conviverão em harmonia.
Agora são os ipês rosa. Depois virão os amarelos. Por fim, os brancos.



Cada um dizendo uma coisa diferente. Três partes de uma brincadeira musical, que certamente teria sido composta por Vivaldi ou Mozart, se tivessem vivido aqui.
Primeiro movimento, “Ipê Rosa”, andante tranqüilo, como o coral de Bach que descreve as ovelhas pastando. Ouve-se o som rural do órgão.
Segundo movimento, “Ipê Amarelo”, rondo vivace, em que os metais, cores parecidas com as do ipê, fazem soar a exuberância da vida.
Terceiro movimento, “Ipê Branco”, moderato, em que os violoncelos falam de paz e esperança.
Penso que os ipês são uma metáfora do que poderíamos ser. Seria bom se pudéssemos nos abrir para o amor no Inverno…
Corra o risco de ser considerado louco: vá visitar os ipês. E diga-lhes que eles tornam o seu mundo mais belo. Eles nem o ouvirão e não responderão. Estão muito ocupados com o tempo de amar, que é tão curto. Quem sabe acontecerá com você o que aconteceu com Moisés, e sentirá que ali resplandece a glória divina.

Rubem Alves

http://rubemalvesdois.wordpress.com/2012/09/07/sinfonia-em-3-cores/

Um Deus que se pode amar




Um amigo me enviou o texto abaixo com a pergunta: “Rubem, você sabe se isso é autêntico?” Sua pergunta revelava espanto e incredulidade. Será que o texto tinha saído mesmo da pena do filósofo judeu Baruch Spinoza (1632-1677), que polia lentes durante o dia para ganhar a vida e escrevia filosofia à noite iluminado pela luz de uma vela? Respondi: “O estilo, definitivamente, não é do filósofo. Quanto ao conteúdo sinto reverberações da sabedoria do Eclesiastes mais a mansidão de um ateísmo místico. Mas a autoria não importa. O que importa é a sabedoria. Vou até publicar o texto no Correio Popular…” Estou cumprindo a promessa.
“Para de ficar rezando e batendo no peito! O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti.
Para de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construístes e que acreditas ser a minha casa. Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti.
Para de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau. O sexo é um presente que Eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.
Para de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho, não me encontrarás em nenhum livro? Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu trabalho?
Para de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor.
Para de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Se Eu te fiz… Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez? Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso?
Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti. Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti. A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia. Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é o único que há aqui e agora, e o único que precisas.
Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro.Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.
Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso de dar um conselho. Vive como se não o houvesse. Como se esta fosse tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei.E se houver, tem certeza que Eu não vou te perguntar se foste comportado ou não. Eu vou te perguntar se tu gostastes, se te divertistes… Do que mais gostaste? O que aprendeste?
Para de crer em mim – crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sigas em ti. Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar.
Para de louvar-me! Que tipo de Deus narcísico tu acreditas que Eu seja? Me aborrece que me louvem. Me cansa que agradeçam. Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo. Te sentes olhado, surpreendido?… Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar.
Para de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim. A única certeza é que tu estás aqui, que estás cheio de maravilhas. Para que precisas de mais milagres? Para que tantas explicações?
Não me procures fora! Não me acharás. Procura-me dentro… aí é que estou.”
Rubem Alves

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Hoje acordei...



Hoje me acordei pensando em uma pedra numa rua de Calcutá. Numa determinada pedra numa rua de Calcutá. Solta. Sozinha. Quem repara nela? Só eu, que nunca fui lá. Só eu, deste lado do mundo, te mando agora esse pensamento... Minha pedra de Calcutá!

Mário Quintana

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